A Turquia é, talvez ainda mais que a Rússia, o modelo do estado charneira, com um pé em cada um de dois mundos divorciados. Talvez por isso tenha o condão de ser uma comichão incómoda no vazio de idéias sobre o qual se vai pachorrentamente construindo uma união económica e política sem qualquer coisa que se pareça mesmo ao de leve com uma direcção estratégica.
Talvez valesse a pena, nesta altura, perguntar aos cidadãos da UE se esta deve crescer ou ficar assim mesmo. Assim de chofre, estou em crer que os cidadãos seriam avessos a qualquer alargamento.
Afinal de contas, o tempo das velhas potências terminou definitivamente no meio do mais tremendo banho de sangue da História, e desde então as nações da Europa limitaram-se a uma existência de viúvas abastadas, que lentamente consomem o espólio do defunto enquanto queimam o tempo em intermináveis jogos de canasta e falam mal da vizinha russa, uma ingrata que nunca se deu bem com o resto da família.
Ainda assim, uma vizinha russa que acabou por, na sua queda, proporcionar alguma comoção e o acolhimento apressado de alguns dos seus afilhados tão subitamente largados na rua. As viúvas chamaram a este alargamento um passo estratégico. Lá terão as suas razões...
Assinale-se que este passo estratégico foi decidido ao mais alto nível, sem que os cidadãos da UE alguma vez fossem chamados a pronunciar-se directamente sobre o assunto.
Por entre duas chávenas de chá com um farrapinho, as viúvas ainda ponderaram convidar o turco, primo afastado, para os jogos de canasta. Mas nunca se percebeu muito bem se era assunto sério ou leviandade momentânea das velhotas. Agora como antes, a Turquia é Ocidente às segundas, quartas e sextas, e Oriente nos dias restantes, uma situação equívoca e demasiado complexa para as pobres viúvas, cujo cérebro já soçobrou irremediavelmente depois de tanta conversa mole sobre canasta e carapins. Mais tarde ou mais cedo, portanto, o equívoco teria de ser desfeito, de preferência com alguma dignidade. Infelizmente, as viúvas já nem isso conseguiram fazer, preferiram deixar o turco esquecido na soleira, condenado a esfregar os pés incessantemente num tapete áspero que acabou por lhe estragar as solas e a paciência.
Em abono da verdade, deve dizer-se que a maior parte das viúvas não se interessou muito pelo assunto, talvez porque estejam já tão tomadas pelo Alzheimer que nem tenham reparado que a Turquia estava à porta. Mas há três velhotas particularmente fiúzas que não deixaram escapar a oportunidade de meter o seu veneno, por razões distintas. Ratzinger, Merkel e Sarkozy, à conta da cultura ou coisa que o valha, tudo fizeram para espantar o turco.
Bom, imaginemos agora que as viúvas finalmente esticaram, deixando a geração seguinte entregue a si própria... Que cenário enfrenta esta ?
Quatrocentos milhões de cidadãos mantidos na ilusão da superioridade, subitamente confrontados com a inoperância dos seus modelos económico, político e cultural num ambiente globalizado onde vence o melhor e mais barato. Fim do jogo, dir-se-ia, a UE teria de se adaptar a uma redução drástica no seu padrão de vida para poder subsistir nesse novo ambiente, já que a alternativa de transformar a União numa fortaleza proteccionista teria como contrapartidas a derrocada do castelo de cartas dos seus capitais deslocalizados e a estagnação da economia no meio de um mercado que já está mais que saturado e que foi distorcido até ao limite para garantir a paz social.
Um problema... Mas não o único problema. Para aguentar por mais algum tempo a ficção, e porque do outro lado do Mediterrâneo as coisas não seguem por melhor caminho, o hábito da importação de mão-de-obra barata deverá manter-se, senão mesmo crescer. E aqui ganha corpo um problema maior, o da lenta invasão por um exército composto pelo escalão mais baixo entre os mais baixos da cintura islâmica. Julgamos conhecer o desenlace, já vimos situações semelhantes no passado, e quando as coisas pioram basta pôr de lado o verniz cultural, apelar ao chauvinismo e ao cacete, correr com os estrangeiros e deslizar para qualquer coisa próxima do fascismo.
Mas... Pode a UE dar-se a esse luxo no séc. XXI ? É duvidoso. Enfraquecida e cercada por quem muito justamente alimenta algum revanchismo, a UE vai ter de se haver com a seca e patética hostilidade russa e a antipatia activa de um mundo árabe canalizado para o eixo Turquia-Síria-Irão, abençoado pelos chinocas. Pouco auspicioso, o cenário.
E no entanto, tudo poderia ter sido diferente ( e talvez possa ainda sê-lo ). Ao apostar na ocupação da faixa de segurança a Leste, a única coisa que a UE conseguiu foi assegurar a animosidade russa. Uma atitude idiota, se pensarmos que à partida a Rússia teria todo o interesse em reforçar a sua ligação à Europa, já que o seu namoro com a China será necessariamente curto. Mas esqueçamos esse triste episódio, o mal já está feito... Restam duas outras frentes que deveriam suscitar um forte investimento.
Por um lado, a relação com a margem sul do Mediterrâneo... Investimento directo e aposta forte na formação e intercâmbio de quadros, como única forma de garantir uma aproximação cultural real. Absoluta restrição das tentações neocoloniais, já que o seu resultado é garantidamente desastroso.
Por outro lado, a Turquia... A sua posição geográfica é de um valor inestimável, tal como é inestimável a sua osmose cultural com todo o universo islâmico árabe e persa. Friso bem este segundo ponto... No seguimento da atitude insultuosa da UE, a Turquia tem vindo a reconstruir sob a excelente direcção política de Erdogan, ano após ano, a rede de interdependências quebrada com a queda do império otomano. E neste processo é digno de espanto o acolhimento favorável que a iniciativa tem tido nos antigos territórios vassalos, quando seria de esperar que a recebessem com uma boa dose de anticorpos.
Poderemos esperar que os cidadãos da UE, ou pelo menos os seus tutores políticos, olhem para esta questão com um pouco de bom senso e sentido de estado ? É duvidoso. Ratzinger está apenas interessado em aproveitar em benefício próprio a insegurança dos cidadãos, um benefício que se corporize na definição prática da UE como clube da cristandade desvalida, mesmo que para isso não tenha qualquer legitimidade, um pormenor que não o deve incomodar muito ( tal como, pelos vistos, não incomoda o nosso Policarpo ).
Quanto a Merkel, não se percebe muito bem para onde vai, pois os medos que se lhe adivinham poderiam ser facilmente contidos por regimes transitórios.
Quanto ao petit Sarkozy tudo é mais claro, pois se trata de um revivalista que acredita na reconstrução de l'empire. O tempo se encarregará de lhe mostrar que l'empire já era, pena é que talvez não haja tempo para corrigir o tiro.